Depoimento sobre o terremoto no Marrocos
Eu e minha família estavámos em casa, em Rabat, às 11 da noite da última sexta-feira, quando sentimos o chão se movimentar. Meio sem acreditar que pudesse ser um terremoto, ficamos em silêncio, prestando atenção ao movimento, meio que para comprovar que se tratava de uma tontura coletiva da família… Mas depois de alguns segundos, o tremor debaixo dos nossos pés tinha todo o jeito de ser um terremoto. Já havíamos passado por alguns terremotos de intensidade média em El Salvador e no Chile, e os sinais eram os mesmos. E num caso desses, não dá para esperar para ver até onde o tremor vai chegar, pois pode ser tarde demais. Então saímos para o pátio da casa, e seguimos sentindo o chão se mover. Levemente, compassado, e constante.
Passaram-se cerca de 30 segundos até que o movimento parou. Entramos em casa meio incrédulos, e imediatamente as mensagens começaram a ser trocadas entre os amigos, e o terremoto já estava confirmado. Ainda faltavam maiores detalhes, que em seguida foram chegando.
Soube-se que o epicentro tinha sido para os lados de Marrakech, um pouco mais ao sul, onde está a famosa cadeia de montanhas do Atlas, que praticamente separa a maior parte do Marrocos com o deserto do Saara, em direção sul-sudeste. E nessa região montanhosa tem muitas pequenas cidades, o que do nosso ponto de vista chamaríamos de povoados, algum tipo de urbanização muito rudimentar, que está construída naquela região há séculos. Talvez para fins de melhor visualização, possamos pensar em alguma coisa tipo uma favela, mas infinitamente menor e sem violência alguma. As casas são construídas em barro ou algum arremedo precário de tijolo, estão grudadas umas às outras, parede com parede mesmo, têm dois ou três andares, e se distribuem, caoticamente aos nossos olhos, de forma sinuosa e desordenada por estreitas ruelas que podem variar de 70 cm a 3 metros de largura, no máximo.
Isso é o que se conhece por medina. Só a título de curiosidade, em uma medina sempre terá uma mesquita (o lugar de reza), um hammam (o lugar de banho), e um forno coletivo (onde até hoje as pessoas levam suas massas amassadas em casa para assar). Ou seja, vive-se numa medina como vivia-se há seculos. Imagine este hammam e o forno como simplesmente uma portinhola, que pode ser meio torta, meio feia, onde se entra e lá estará a estrutura à disposição. E algum tipo de loja também muito simples, alguma escola. Essa era a vida diária das pessoas nestes povoados. Algum espaço aberto somente haverá depois que termina a aglomeração de casas da medina, ou em algum pátio interno de um riad, ou em alguma pequena pracinha em algum dos vários entroncamentos dessas ruelas. Para o marroquino típico é assim. A estrutura urbana é muito simples.
Estrutura mais modernizada, digamos assim, é encontrada em Marrakech, que tem uma medina muito grande, além da cidade nova. E nesta medina também há os riads, que são casas um pouco maiores com um pequeno pátio central que os caracteriza. Casas de famílias mais abastadas antigamente, hoje são pequenas pousadas que abrigam muitos turistas com bastante fidelidade à cultura marroquina, sobretudo na decoração e no hábito do chá de menta, oferecido aos clientes com pelo menos um quilo de açúcar. Onde também se encontrará um hammam, melhor estruturado para os turistas, mas seguindo o mesmo “modus operandis” que se usa para os marroquinos.
Essa explanação toda é para tentar formar uma ideia de como é uma medina, seja ela em Marrakech, ou Fès, ou nas lonjuras encravadas nas montanhas dos Atlas. Só que no Atlas são só as medinas, ou povoados, e nada mais. Por essas vielas, milhares de pessoas levam suas vidas tranquilamente, sem se perder, sem se estressar, sem imaginar que poderia ocorrer um terremoto que levaria tudo ao chão em poucos segundos.
E numa situação inesperada como esta, por mais que os locais se locomovam facilmente pela medina, na hora do terremoto, de noite, em meio ao pânico e pensando na preservação da sua vida e dos seus familiares, deve ter sido muito difícil sair de lá, encontrar um lugar aberto onde nada desabasse sobre sua cabeça. Muitas pessoas já estavam dormindo; muitos idosos com dificuldade natural de locomoção e crianças com sua ingenuidade pueril tiveram que tentar sair rapidamente de suas camas sem entender o que estava acontecendo. Outros tantos nem acordaram. E outros tantos estavam na rua. E entre buscar os seus em suas casas e correr pela própria vida, esses segundos terríveis talvez não os tenham permitido lograr nem uma coisa nem outra.
Imagine a dificuldade de sair de lá nestas condições, e por isso o número grande de fatalidades. Imagine como se houvesse um único prédio tão grande em largura e comprimento como um estádio de futebol, porém de dois ou três andares, e esse prédio viesse ao chão. Não há como acessar a parte central rapidamente. O socorro vai ter que ser feito pelas beiradas, com todo o protocolo de cuidado que um resgate desses exige. Mas o grande miolo, um grande amontoado de pedras disformes e de difícil acesso, vai ficar desatendido por muito tempo.
A tristeza é muito grande. O marroquino é um povo muito gente boa. Estão sempre alegres e envolvidos com o seu meio. São solidários; se ajudam; são como irmãos. “Khoya”, como eles mesmo se chamam uns aos outros em darija, o árabe falado no Marrocos.
Espero que Allah, de alguma forma, consiga manter no marroquino esse gosto, esse dom, de ajudar ao seu khoya. Que esse traço nativo consiga se sobrepor à dor.
Sobre os 300 brasileiros que aqui vivem, e os inúmeros turistas e pessoas que estavam a trabalho, todos estão bem, Alhandulilah (graças a Deus). Aos poucos, todos foram dando e conseguindo notícias. Como se diz, foi só o susto mesmo. Sem danos físicos.
Eu, como gaúcha, já estava bastante triste com a tragédia no vale do Taquari. Igualmente vidas perdidas repentinamente; uma coisa chocante e difícil de acreditar. A gente não pode mensurar a dor das famílias pelas perdas das vidas e de suas histórias, materializadas nas suas casas, seus pertences. Mas nos solidarizamos de alguma forma, etérea, doando algo, arregaçando as mangas e as barras das calças para tirar o lodo, almejando que algum tipo de esperança as levante e as faça seguir adiante.
Tanto no Marrocos quanto no Rio Grande, o trabalho de reconstrução, de casas e de vidas, terá de começar. E já.