Língua de serpente

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Sua vida era normal, seu entorno natural, ou seja, nada pior, nem melhor

Mas ela era peculiar, pois já acordava xingando tudo o que via ao seu redor

Era tão tenebrosa, como se tivesse despertado do lado avesso da cama

Passaram-se os anos, seguiu insultando, maltratando, e assim cresceu sua fama

Por onda passava, era um vendaval de maldições

Quando chegava, as pessoas seguiam em outras direções

Às vezes sentia-se só, então, para chamar a atenção

Puteava qualquer um, fosse criança, adulto ou ancião

Um dia, até a morte se cansou de suas obscenas vociferações

E numa talagada certeira, lhe tirou a vida e suas árduas reclamações

Nunca num povoado, uma partida foi tão celebrada

Como aquela morte, que por muitos era constantemente desejada

Mas apesar do constante ultraje que causava sua presença

O tempo demonstrou que o povo gostava de sua previsível desavença

E começaram a falar de sua pessoa, exaltar sua liberdade, sua insultante sapiência

Até que a imortalizaram num encontro semanal, no clube terapêutico da maledicência

Nestes dias, oravam frente sua foto e, ao mesmo tempo, vociferavam avalanches de palavrões

Depois regressavam às suas casas exaustos, mas com uma sutil leveza em seus corações

Acreditando que até as ofensivas palavras, possuem curativas aptidões.