Ela Despertou, Dependente

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Ela acordou, ou melhor, abriu os olhos. Era um dia incomum, pois não precisava correr para preparar os filhos que tinham que ir à escola, não precisa enfrentar aquelas rotineiras e revolucionárias ações de convencer crianças a sair da cama antes do sol nascer, deveras uma crueldade dos tempos modernos. Era fim de semana, estava livre e mesmo que as crianças já faziam barulho pela casa, ela tinha ficado mais tempo na cama. Muito mais do que o lhe era habitual.

Estava deitada, olhos abertos fitando o teto como se estivesse assistindo a um filme, mas pela expressão dos olhos, não era um filme muito agradável, então, de sobressalto, saiu da cama e foi ao banheiro e, ao chegar em frente ao espelho, olhou profundamente para aqueles belos olhos azuis, de uma beleza incomum e admirável, mas ela não enxergava tal beleza, apenas notou que o brilho extasiante de outrora, tinha dado lugar à uma nuvem escura e pesada que nublava os encantos da vida.

A sensação era tão desagradável que o simples ato de olhar nos seus próprios olhos lhe causava certa repulsa e desconforto, então, olhou para o lado, viu a parafernália de embalagens de cosméticos que usava para mascarar de si mesma aqueles temores internos, olhou as toalhas no chão que as crianças haviam deixado, as roupas do marido que insistia em atirá-las onde lhe convinha, olhou para aquele espaço como se estivesse numa cela, presa, sufocada, amargurada.

Então, sentou-se no vaso e, mesmo sem querer, a vertente das lágrimas abriu na torneira dos olhos e jorraram sobre o seu rosto e, quando os primeiros soluços de choro estavam chegando nas cordas vocais, antes de virarem uma sonora ladainha, ela os suprimiu, os engoliu vorazmente, pois não queria que as crianças à vissem chorando, ou não queria demonstrar sua impotência frente aos temores que assolavam sua consciência, sentimento este mais conhecido como orgulho, esta indecorosa invenção social que tanto limita, afasta e destrói vidas humanas, inútil por essência, inconveniente por estilo, mas aceitável por fraqueza, ou demência, social.

E, ao engolir o sopro do sofrimento, as lágrimas se tornaram mais intensas, uma torrencial força que alagava seus pés e desapareciam no fofinho tapete. Então, ela enxugou avidamente todo aquele charco, levantou-se, abriu a gaveta e encontrou a caixinha mágica do seu amanhecer, um pequeno recipiente de plástico, inodoro, incolor e comum, mas que dentro possuía as pílulas do despertar, os comprimidos do encanto, as pastilhas do matutino reinício.

Seu nome era complicado e estrangeiro, ou científico, mas seu intenso poder era imediato e prazeroso.

Assim, mecanicamente, seus longos, delicados e finos dedos, ainda trêmulos pelos soluços existenciais, agarraram a hóstia farmacológica, a colocaram divinamente na boca e ela a engoliu seca, forçosa e rispidamente, como que querendo extinguir aquele desvairado transtorno matinal.

E assim, em questão de segundos, as toalhas foram recolhidas, as roupas foram resgatadas, o olho recobrou seu brilho, o sorriso apareceu no rosto, o ânimo correu pelas veias, os cosméticos começaram a aformosear ainda mais aquele simétrico e lindo semblante, ela foi ao guarda-roupas, escolheu algo leve e simples para usar em casa, depois abriu a janela, olhou para o verde das árvores, o azul do céu e escutou os sons da vida, enquanto as crianças entravam no quarto, alegres e sorridentes, correndo para os seus braços.

Depois, quase que esquecendo do calvário recém vivido, o dia passou com suas responsabilidades familiares, com suas interações sociais, com algumas lembranças laborais e com aquela mesmice que cansa, que fatiga e corrói a quotidiano.

Até que a noite chegou, frequentemente em consonância com a dissipação do efeito fármaco. E, neste momentos, como um algoz que sorrateiramente espera sua vítima, a avalanche emocional retornou afoita e rebelde, pois ela não gosta de ser suprimida ou abandonada e, com ela, vieram as mesmas dúvidas existenciais, os mesmos medos inventados, as mesmas angústias esquecidas, as mesmos temores imaginados que, em uníssono, pediam sua completa atenção, seu mais carinhoso cuidado e seu mais atento zelo, mas ela havia aprendido a não escutá-los, a ignorá-los e a descreditá-los, mesmos em face de suas inquestionáveis evidências sentimentais. Mas existem certos sentimentos que são espertos e perspicazes visto que desejam ser entendidos, por isso sempre retornam.

Mas independentemente deles, a vida continua e ela precisa de seu descanso noturno e, naquela batalha interna entre a conversa com os despertos demônios ou a leveza do adormecer, ela se deita na cama, percebe que toda a família dorme, enquanto seus olhos estatelados somente olham para cima observando a escuridão do teto, sente seu coração bater intensamente, pois as divagações existenciais parecem ter vida noturna e gostarem de uma cama visto que, quando ela deita, eles despertam e, ao acordarem, não a deixam dormir.

E ali ela fica, a respiração alvoroçada, os olhos imóveis, os sentimentos atônitos e o tempo passando, tão certeiro e lento com as areias de uma ampulheta.

Mas dormir é preciso e, noutro sobressalto, ela levanta, vai ao banheiro, novamente vê toalhas e roupas pelo chão e suspira frente a bagunçada repetição da vida, mas ignora a anarquia, abre a gaveta e, ao lado da mágica caixinha matutina, encontra o cobiçado estojo relaxante da noite, o bálsamo para as chagas da consciência, o abre com fervor e ansiedade, agarra a primeira pílula que seus dedos sentem, a atira para dentro da boca enquanto se olha no espelho e, em poucos segundos, observa os lindos olhos azuis ficarem acinzentados, moribundos, chapados.

Então, se arrasta de volta ao quarto, se atira na cama e adormece, um sono profundo, entorpecido e induzido, sem sonhos mirabolantes, sem desejos ardentes e sem grandiosas fantasias.

E desse jeito, a rotina segue, um costume fisicamente químico, espiritualmente anêmico e estruturalmente disfuncional, mas que funciona por ingestões não naturais, que sobrevive por anseios fármacos e que, como infindas coisas que não tem muito sentido, segue seu arrítmico ritmo, sua disparatada cadência e seu ininteligível compasso, passo a passo, vivendo a vida em pedaços, quotidiano cansaço, num existencial descompasso.