Confissões da Morte

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A morte bateu à minha porta. Sua figura parecia assustadora, não por essência, mas porque estava cansada. Trazia consigo milênios de trabalho árduo, efetivo e irrevogável. Mas o que lhe minguava a essência não era o labor, e sim o desprezo, o escárnio e as maldições as quais ela era submetida pelos parentes da pessoa que ela, segundo instruções específicas, levava para um passeio no infinito. Confessou que apesar de ser poderosa, ela era apenas um instrumento preciso da lei cósmica. Uma funcionária exemplar da burocracia universal. Conversamos por um longo tempo, durante o qual ela extravasou toda a sua tristeza e pesares. Até que, após muitos intercâmbios, ela me olhou de soslaio, como que inferindo alguma mensagem não expressa. Juro-lhes que pensei ter chegado minha hora. No entanto, ela estava apenas brincando com o momento, fez isto apenas para descontrair sua própria amargura. Ela brincava, pois sabia que a tenho como constante companheira, uma amiga invisível que carrego afavelmente num cantinho especial do coração. Que a levo com sentimentos de que um dia nos encontremos e, de mãos dadas, caminharemos pelo fascinante rio da interconexão. Ela era consciente deste ponto, por isso, sem receio veio confidenciar com este singelo amigo. Logo, tão repentina quanto sua chegada, foi sua partida. Sem nenhum gesto formal ou intenso. Foi simples e passageira como um amigo que vira as costas e segue adiante, pois sabe que, num momento ou outro, regressará como se nenhum intervalo de tempo tivesse passado. Assim, a morte partiu um pouco mais alegre. E eu fiquei, também.